(Também) para a Cristina.A última vez que vi a minha avó com vida estava escuro. Escuros os corredores do lar que, à hora do jantar dos restantes ocupantes, se apagavam já; escuro o quarto onde a luz não se acendeu para não incomodar a outra velhinha - que me fitava com olhos vítreos, como se visse já, diante de si, a própria da morte; escura a disposição com que ali entrei e dali saí, convencida da impotência de qualquer um de nós - família, médicos, humanos - perante o que ali vinha.
As últimas palavras que ela repetiu, pelo meio de um discurso sôfrego que a dentadura em cima da mesinha da cabeceira não ajudava a perceber, foram «Tino», «caraças» e «retrete». Tinha, suponho, vergonha de estar de fraldas e estava convencida que, em vez do meu pai, era o outro filho que a visitava naquele fim de tarde cinza e frio.
O dia do funeral, por acaso (ela usava esta expressão para tudo, mas sobretudo para elogiar os cozinhados da nora; «Oh Ana, por acaso está bom!», dizia sempre com a mesma ofensiva surpresa), até foi bonito.
Dia dos Fiéis, ano da graça de 2008, 97 anos depois de Dona Maria nascer em família pobre e numerosa, da qual todos os efectivos se têm vindo, gradualmente, a apagar.
Estava um daqueles dias de Inverno cheios de sol, céu impossivelmente azul, e ao velório compareceu boa parte da sociedade de Santo Ovídio, incluindo o empregado do café onde a minha avó passava as tardes (e de quem dizia cobras e lagartos). A dizer a missa esteve o Padre Queirós, que baptizou toda a gente que conheço e comigo partilha a naturalidade - e de quem a minha avó não gostava nada, por «falar muito baixinho».
Chegámos ao cemitério primeiro que o caixão, pelo qual esperámos, sob o sol manso de Outono. Foi então que um cãozinho pequeno, mas bem bonito, apareceu do nada e se fez às festinhas. Todos lhe dispensámos atenção, desejosos de uma centelha de calor naquele dia cabisbaixo.
Quando o caixão chegou, o bicho acompanhou o cortejo, ordeiramente. Assistiu ao enterro para depois desaparecer, tão misteriosa e discretamente como surgira.
Engraçado é que o cachorro era - ou assim me pareceu, a fazer fé nas fotos a preto-e-branco que a minha avó me mostrava com saudade - parecidíssimo com o Nice, primeiro de uma dinastia canina que contemplou cães de todas as raças, cores e tamanhos, sempre com o mesmo nome, no número 81 da Coats & Clark.
Morreu, esse cachorro, atropelado quando o meu pai e seus irmãos eram crianças, e a minha tia abriu o portão deixando o pequenito escapulir-se.
Naquele 1 de Novembro de 2008, foi difícil - pelo menos para um lírica como eu - não ver no inesperado convidado canino do funeral da minha avó uma nova encarnação do malogrado Nice I, que evidentemente nunca conheci mas cuja história era contada de forma recorrente, lá em casa.
Lembro-me dos meus avós todos os dias e às vezes até me parece que nem morreram, e que se for ao «palanque» ou ao «galinheiro» (as alcunhas dos cafés que um e outro frequentavam) os vou encontrar, ainda: a minha avó a despejar pacotinhos de açúcar atrás de pacotinhos de açúcar na água a ferver da qual fazia um café interminável; o meu avô de chapéu, a repetir as histórias de quando era petiz e criava indizíveis engenhocas.
Outro dia um amigo usou a expressão «dar a ferro» e num ápice senti-me transportada para a cozinha da minha avó (há muitos corredores mais largos que aquela cozinha), onde ela esticava um lençol velho sobre a mesa de inox e ali engomava a sua roupa, melhor do que alguma vez conseguirei fazer. Leio «dar a ferro» e sinto imediatamente o cheiro do vapor na roupa gasta, o aroma da cevada e do pão com margarina dos meus lanches predilectos, o silvar do vento no quintal/jardim/selva lá fora, sempre verde, sempre vivo.
A minha avó faria 98 anos no próximo domingo, mas custa-me a crer que já cá não está. O mesmo para o meu avó, cujas últimas palavras, para o meu pai, mostravam vontade de «ir à pesca outra vez».
É um lugar comum,
mas enquanto os tivermos presentes não os deixaremos morrer. Beijinhos, Cristina.