Há 13 anos
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
1995 - 2011
Lembro-me do dia em que o Kit chegou a casa. Saiu da cesta de uma senhora da Anadia, que vendia uma ninhada de cachorros na «Feira dos Passarinhos», no Porto, directamente para as mãos do meu pai que, regressado de uma bem regada reunião da tropa, pagou pelo bicho 10 contos. Referia essa maquia carinhosamente sempre que, com frequência, o animal fazia asneiras ou dava despesa («Dei eu 10 contos por ele, se tivesse posto o dinheiro a render, etc»).
O Kiko, nosso/meu primeiro cão, tinha morrido de velhice há coisa de dois anos e eu e a minha irmã, muito infantis na nossa adolescência, queríamos à força toda um novo animal para estimar. Os animais sempre foram muito bem estimados lá em casa, dos reis caninos à tartaruga que o Kit abocanhou e cuja carapaça os meus pais remenderam com fita gomada da grossa. Viveu muitos anos depois desse conserto.
Ao contrário de mim e da minha irmã, a minha mãe fazia questão de dizer que não queria mais animais lá em casa. Mas, quando o meu pai, ainda vagamente alegre da reunião da noite anterior, entrou pela casa da minha avó adentro com o pequenito (muito pequenino) ao colo, de imediato deixou escapar um «aawww!» que não deixou margem para dúvidas: estava selado o amor entre os dois, para sempre.
Assustado, o Kit, que na altura nem nome tinha, fez chichi. Quando chegou a casa para ser fotografado, pela primeira vez, no sofá, fez chichi outra vez. E acho que no carro, entre casas, também se aliviou. Era um bebé e tudo foi limpo com paciência e até alguma ternura.
No ano seguinte vim para Lisboa. Cada vez que ia a casa o cão dispensava-me a mais eufórica recepção possível: desde guinchos histéricos a mordidelas de amigo, não faltava nada - bem, talvez um fogo de artifício - para ilustrar como não me esquecera. Às vezes, quando eu já regressara a Lisboa, cheirava a roupa que eu esquecia no quarto e abanava o rabinho, conta a minha irmã.
A minha mãe chegou a lamentar suspeitar que eu tivesse mais saudades do cão do que dela. Pela nossa parte, eu e a minha irmã acreditávamos piamente que o Kit era «o filho favorito». No meio dos falsos ciúmes, o cão era uma cola tão valiosa como outra qualquer naquela família.
Há uns três anos o veterinário ouviu a «tosse cardíaca» do Kit e disse à minha mãe para se «preparar». À semelhança da minha avó, contudo, que resistiu 97 anos, o cão que muitos confundiram com uma cadela e não terá deixado descendência aguentou. Mais um ano, outro, outro ainda. Cada vez mais magro, doente, mouco. Nos últimos dias deixou de ver, metia-se em armários e corria o risco de voltar a cair escadas abaixo.
A última vez que fui a casa tive de ser eu a procurá-lo. Já não me ouvia chegar e, de olhar perdido no quarto dos meus pais, só me reconheceu quando me aproximei e lhe acariciei o focinho. Com uma capinha de malha que a minha mãe lhe tricotou pelas costas, não consoou - nunca gostou de peixe, e lá em casa come-se bacalhau a 24. Mas no dia seguinte jantou com prazer umas fatias de carne assada. A minha mãe agarrava-se a esta falta de fastio como sinal possível de uma saúde que já não existia.
O chichi, tal como no primeiro dia, era novamente uma constante. No quarto de banho e marquise acumulavam-se os jornais antigos pelo chão, para minimizar os danos. Ninguém lhe ralhava, já, mas a paciência e ternura com que se limpava o bebé deu lugar à paciência e resignação de quem espera o inevitável.
Hoje às 20h10, o Kit começou a andar às voltas sobre si mesmo. Os meus pais levaram-no para a varanda, para apanhar ar, mas a minha mãe soube que não era esse o problema. Já lá fora, o cão deu um grito e partiu.
Apalavrado estava já um enterro na casa dos meus padrinhos, de quintal generoso. A minha irmã, que não quis ver o Kit sem vida, tratou de tudo e os meus pais ajudaram o meu tio a depositar o cachorrinho debaixo de uma árvore de flores vistosas, no mesmo jardim onde repousam outros notáveis cães da mesma família (Charlie e Nico, lembro-me de repente).
A minha mãe estranhou que o corpo aparentemente vazio do cão lhe pesasse tanto nos braços, a caminho do funeral.
«Ainda hoje tinha lavado a caminha e as mantas dele», disse-me. «Ficaram lavadas».
Enquanto escrevo isto, um cão ladra lá fora, perdido no silêncio da noite. Sei que os cães nunca morrem na nossa memória, porque ainda hoje sou capaz de sonhar com o Kiko. E enquanto ouvir a Mary chamar pela sua pequenita, ou a Cibele a contar-me como o Benny e a Vivi subiram para a banca da louça e de lá derrubaram tupperwares e facas, sei que o Kit, ou a ideia dele, também continua viva.
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8 comentários:
beijo grande, Lia.
com eles vai sempre um bocado de nós. eles são um bocado de nós.
Sim... basta dizer que quando ele chegou, ainda eu vivia no Porto. É uma era que se despede. Beijinhos, obrigada! *
gamma, não se faz... lá me saltaram as lágrimas para cima da mesa, das vias, dos botões do estúdio. não conheci o pequenito pessoalmente, mas tenho a certeza que será o melhor amigo da bobina quando chegar o momento dela.
podes pedir a bobina emprestada quando quiseres e ir à janela ouvir-me gritar por ela rua acima, rua abaixo, de manhã à tarde e à noite :)
beijinhos
: ))
O momento da Bobina é só daqui a muiiitos anos, eheh. Depois manda a conta dos botões estragados por causa das lágrimas: antes pagar isso que à ERC : P
Beijinhos, obrigada.
lia, não conheci o teu kit, mas este teu elogio faz-lhe, de certeza, justiça. um beijo muito grande.
O kit que delirava com as palavras "VAMOS À RUA!!!??" e zangava-se à séria com "Vamos tomar banho?". "Onde está a bolinha??" e eram horas a brincar, atira, trás e apanha :)
Dispensava o veterinário e o homem do gás, mas não dispensava um belo pedaço de carne.Dispensava os foguetes mas não dispensava umas festas na barriga.
Ficava triste como a noite com as ausências da patroa e ninguém o chateasse, tinha morrido para a vida."Kit onde está a patroa?" e lá ia ele para as escadas de orelha arrebitada esperar a D.Ana!
Caramelo e Kit, o casal para muitos que os viam a passear na rua =)
E Lia ele ficava rouco de tanto ladrar quando regressavas ao Porto, e chorava junto a ti como quem diz "tive tantas saudadeeees"
As memórias são muitas e é isso que interessa que ainda vives através delas, e tiveste uma vida linda!
Foi bom ler, obrigada!
abraço Lia aqui da mana emprestada,
Clara!
Elogio bonito, mana. :)
São dias e tempos tristes quando um animal amigo nos leva um bocado com ele. Ficamos mais ricos mas um pouco mais sozinhos, para sempre. O amor que eles nos dão, ninguém nos volta a tirar.
beijinho e abraço forte. a ver se nos encontramos para falar.
saudades,
mana
Não me lembro bem quando foi que conheci o Kit, mas lembro-me que a certa altura devo ter pensado 'meu deus, o cão vai ter um treco!', tais eram os guinchos de prazer que ele dava por ver a minha amiga. Na segunda ida lá a casa as festas também me foram feitas, e acho que a partir daí o kit percebeu que eu lhe dava todas as festinhas na barriga que ele quisesse. A sua doçura no olhar e o seu grande companheiro Caramelo (Melinho prós amigos) conquistaram-me o coração, e eram mais um motivo de alegria sempre que a Lia me levava a Gaia :) Das priemiras vezes que lá fui lembrei-me do José Mauro de Vasconcelos, que o seu famoso livro «Meu Pé de Laranja Lima» diz que queria tirar uma fotografia com 'gola de poeta'. O Kit tinha essa 'gola de poeta', que me lembrava invariavelmente o Camões ou o Shakespear. A musa do kit contudo era a D.Ana. Eu posso mesmo dizer que aquilo era amor do mais puro, uma devoção.
Agora ficam as lembranças de chegar a meio da noite de um concerto e de o Kit ser amigo e não acordar ninguém. Se ser acordada com lambidelas logo na manhã seguinte ("does he lick your eyelids in the morning?" já dizia o Conor Oberst) e o pequeno nicho que aquela 'raposinha' achou no coração dele pra mim.
Que descanse em paz, e quem sabe se não está em companhia do seu Caramelo com a Zuca a olhar com desdém prós dois ;)
Um abraço muito grande à família 'Gamma' e RIP Kit
Parola
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