Bem ao meio, uma cama muito alta - a minha avó sempre detestou camas baixas e devia mesmo achar que a minha, que me amparou os costados desde os 4 aos 18 anos, mais parecia um pequenito batel. Ao fundo, um daqueles guarda-fatos de madeira escura, à antiga, carregado de casacões austeros e bolas de naftalina (do tempo em que as ditas ainda não faziam cancro, claramente, que ninguém na família - bate na madeira, bate - apanhou o bicho). E ao lado direito, rumo a uma das janelas para o quintal, uma cómoda comprida onde se alinhavam, sem grande ordem, latas douradas daquela laca que a minha avó usava em exclusivo (e até lhe ofertávamos pelo Natal), fotos do meu avô quando era novo e usava óculos de massa, uma ou outra caixita de jóias. Em Maio recebíamos também aquele santuário portátil que o pessoal da igreja deixava em casa dos fiéis no Mês de Maria, cujo nome me escapa por completo mas que chegou a conviver pacificamente, olhai que lindo diálogo ecuménico, com o Galheteiro de David e respectivas velinhas, de quando a minha tia se lembrou de converter ao Judaísmo (e ainda ia a casa dos pais ao fim-de-semana).
O quarto da minha avó era assim. E depois havia, mais perto da janela e com uma foto mais pequenita, tipo passe, encaixada em baixo, uma moldura onde os meus pais - ou uma versão setentista deles, calças à boca de sino, óculos de mafioso e tudo - desfilavam Aliados abaixo com uma bandeira. De um partido. Antes do 25 de Abril, os meus pais, que hoje não partem um prato, atravessaram a Ponte D. Luiz, que na altura poucas mais haveria, para lutar por certas e determinadas coisas.
O meu avô, que eu muito adorava, nutria simpatia pelos tempos da «outra senhora» e é da sua autoria a inolvidável frase para o meu pai, em resposta a uma carta que ele lhe escreveu de Moçambique, durante a guerra colonial: «Antes prefiro que voltes sem uma perna do que com o vício do jogo» (o filho acabara de confessar-lhe o terrível hábito de jogar às cartas entre combates). A minha avó, quando a senilidade ainda parecia longe, uma vez foi votar e demorou tanto que o meu avô lhe ralhou. «Então», respondeu ela muito pimpona. «Tive de escrever o meu nome todo! Em todas as linhas [de todos os candidatos]!». Ela nunca foi à escola mas teve um senhor que a ensinou a ler, na casa onde começou a trabalhar como criada, ainda era uma criança.
Ontem a foto dos meus pais a descer a Avenida dos Aliados assombrou-me o Domingo. Pela primeira vez devia ter votado em Lisboa, onde vivo há quase 15 anos, mas onde só agora me recenseei. Não votei, porque não consegui perceber onde fazê-lo (Lisboa > Benfica é um bocado vago, senhores da CNE), mas essa é, como se costuma dizer no estudo das guerras, apenas a causa próxima. A verdadeira é que não sabia em qual dos quadradinhos botar a cruz. Não queria dar o meu voto, frugal e tremidinho, a nenhum daqueles senhores. E apesar de, ao longo da tarde, ter entabulado conversações com entes queridos que, ao contrário de mim, levantaram o rabo para ir votar - neste ou naquele fulano - à hora de fecho das urnas, sentimento de culpa e tudo, encontrava-me a esfregar a banheira e metodicamente limpar o resto da casa-de-banho.
Ainda me lembro de quando saía da pequena escola primária de Oliveira do Douro onde sempre votei com a sensação de ter crescido uns quantos centímetros - em cidadania, pertença à sociedade, eu sei lá. Ontem, simplesmente não consegui importar-me o suficiente. E sei que isso é (ainda) mais triste que os olhinhos dos meus pais, desapontados com esta descendência e com este país, naquela foto a preto e branco que o desmantelamento da casa dos meus avós deve ter mandado para o galheiro.
(As boas notícias são que consegui resistir à tentação de anular o voto escrevendo no boletim o meu chavão favorito, por se aplicar a tudo sem dizer nada: «Por isso é que este país está como está»).
Há 13 anos
6 comentários:
uma noite destas aparecem-te os fantasmas do livro do Charles Dickens a mostrarem-te como fica o mundo se não votares.
fora de brincadeira, ainda não tirei o cartão de cidadão para me assumir como lisboeta de pleno direito por causa destas pequenas coisas. só a ideia de passar a "pertencer" a outro hospital/centro de saúde ou ir votar a outro sítio que não a escola primária de Alcobaça assusta.
É como eu, João. Para tu veres, vim para Lisboa em 1996 e só em 2010 me recenseei por cá - e apenas porque tive de tirar o Cartão de Cidadão! Suponho que Freud explique :P
lia, promete (mas promete mesmo) que não voltas a abandonar este teu sofá. podia ficar horas a fio a ler-te. por isso, vá, toca lá a desenterrar mais histórias e a dar aos dedos.
Marta : ) Fiquei tão encabulada com o teu elogio que só agora lhe respondi; desculpa! Desde 2003 que este bicho (sofá) não me abandona, espero que assim continue a acontecer ao longo das próximas primaveras. Beijinhos e boa semana! : ) lia
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