Há muito tempo que não andava de barco no Tejo. E se quiser ser rigorosa, terei de acrescentar que as embarcações da Transtejo ou Soflusa nunca transportaram o meu rabiosque com frequência: assim de repente, lembro-me de ter ido, certamente antes da viragem do século, a casa da Célia comer um belo almoço de bacalhau, e uns anos mais tarde a um malfadado concurso de bandas portuguesas onde fiz de júri.
Esta falta de experiência com os barcos - amplamente compensada pelo conhecimento minucioso dos percursos e manhas da Carris - faz com que passar os torniquetes da estação fluvial do Terreiro do Paço tenha sempre, para mim, o seu quê de novidade e até suspense. Irá o barco dar onde eu quero? Porque é que começámos a abrandar? Estas sirenes de catástrofe nuclear são mesmo necessárias?
Na Sexta-feira passada tive de ir ao Barreiro e, na ausência de boleia, lá fiz bom uso do meu polivalente cartão Lisboa Viva, apanhando em Lisboa o barco das 20h30.
Não fazia ideia que, agora, estas embarcações têm, à semelhança do que acontece nos comboios Alfa ou Intercidades, uns pequenos bares onde, ao balcão, é possível adquirir comes e bebes (batatas fritas, gelados e chiclets; sumos, refrigerantes e álcool - é limitada e triste a vida de quem tem de comer saudável).
Ao entrar no barco, já um grupo de amigos se encostava ao balcão do bar, bebendo cerveja.
Durante uns bons 20 minutos, foram entretidos a discutir com a empregada, que acusava um deles de não ter pago um café há coisa de 15 dias.
O guião seguia mais ou menos assim, com um ou outro retoque a cada volta:
«Não fomos nós, posso jurar-lhe, menina! Mas pagamos na mesma!», diziam os acusados.
«Não quero dinheiro nenhum», retorquia ela, passando o pano Vileda pelo balcão. «Mas foram vocês sim senhor, que eu lembro-me que... » [acrescenta milhentos detalhes que só uma mulher ressabiada poderia ter retido]
«Não queremos que fique com essa imagem de nós! Não fomos nós mas deixe-me pagar!»
«Sei muito bem que foram os senhores, mas não quero dinheiro nenhum. Lembro-me muito bem que...» [blá blá blá]
A assistir ao espectáculo, na primeira fila de bancos frente ao balcão, estava um velho tolinho, de chapéu na cabeça, que entrecortava a discussão gritando, alto e bom som, «BAIXEM OS CORNOS!».
Por vezes também chamada à rapaziada que tentava limpar a honra, junto da empregada do bar, «ladrões!», e pareceu bem divertido quando, finda a viagem, uma porção de gente se dirigiu para a porta de desembarque errada. «Ladrões!», chamou-lhes também, mas o «BAIXEM OS CORNOS» bem prolongado era o seu grito de guerra favorito.
A assistir a isto tudo com a fleuma possível estavam duas senhoras que pareciam conhecer o velhote e que se lamentaram demoradamente, quando por elas passou um «qué-frô», porque nunca na vida lhes haviam oferecido flores. Mentira, corrigiu uma, contando uma elaborada narrativa que se pode resumir assim: certa vez, por acaso e pena, um senhor até a deixou tirar uma rosa branca de um ramo para outra pessoa mais estimada.
Com ou sem concerto de American Music Club, tenho de voltar a andar de barco.