domingo, 29 de fevereiro de 2004

E batata viu cena de... batatada

Mesmo antes de partir (alguém consegue resistir a completar com «naquela estrada... onde um dia chegaste a sorrir?»), gostava de contar mais um episódio da saga «42 - Viver e Sobreviver entre o Casalinho da Ajuda e o Casal Ventoso».

Pois é, eu não tenho culpa de o ranhoso do autocarro, e seu respectivo percurso, me darem jeito, especialmente quando tenho de me desalapar do sofá e vir trabalhar. Naquela carreira da Carris, experimentei já sensações ao alcance de poucos, como ser acusada por uma chunga em avançado estado de putrefacção de não me desviar para que ela se pudesse sentar mais à larga. Também assisti, há pouco tempo, à conversa entre um ex-segurança, irado por, no barbeiro, lhe terem cortado o cabelo de uma forma que o impedia de, posteriormente, seguir o penteado «da moda»; o seu interlocutor era um senhor de cor indistinta e com três metades de dente penduradas na boca. A sua grande preocupação, porém, era mesmo precisar de cortar o cabelo e não ter roupas suficientemente boas para, um dia que tivesse 70 mil contos, poder convencer os donos de um condomínio de luxo a venderem-lhe um apartamento.

Mas já me estou a distrair do essencial. Na passada Quinta-feira, regressava eu a casa a bordo do luxuoso veículo, quando começo a descortinar o característico som de uma zaragata. Infelizmente, estava bastante longe do epicentro da acção... mas ainda assim, consegui aperceber-me do essencial, e guardar na memória mais uns belos momentos de História.

Zangadas com uma mulher de meia-idade por esta não ceder o lugar a uma jovem com criança, duas raparigas ciganas faziam considerável cagaçal. A senhora, que até ao fim manteve o cu no assento destinado a grávidas, idosos e deficientes, alegava ser velha (ou pelo menos eu penso que era isso que ela dizia, num fio de voz abafado pelo basqueiro geral). Retorquiam as ciganas:

«Velhice não é doença!»

Na mesma voz tímida (ou medrosa?), a mulher argumentava que ter uma criança também não era doença. Lógica interessante, desmontada argutamente da seguinte forma, pela rapariga cigana:

«Não, mas sabe qual é a diferença? Se você for de pé no autocarro e cair, e morrer, não se perde nada! Ninguém se dá pela sua falta! E uma criança não é assim!»

A afirmação foi seguida de um «ôôôh» intenso, como nas sit coms gravadas ao vivo, com muita surpresa e indignação pelo meio. Não sei o que terá respondido a mulher, cujo cabelo tinha umas nuances avermelhadas, mas o passo seguinte da rapariga foi ameaçar:

«Eu parto-te a cara toda, tu queres apostar?»

levantando-se para concretizar a promessa. Agarrada pelos passageiros mais próximos, a moça quis, no entanto, mostrar que não era gaja de se ficar. A agressão concretizou-se, assim, com o que a rapariga tinha, literalmente, mais à mão: um balão da McDonalds, sacudido repetidas vezes na cara da outra.

O belo episódio ficou completo com uma discreta referência à penugem da mulher -- «Ficas com o cabelo azu-le! Tens o cabelo vermelho, mas até ficas com ele azu-le!», gritava a cigana -- e, numa altura em que os ânimos pareciam já ter serenado, a bela despedida:

«Hei de fazer uma reza... vais morrer cedo!»

E com isto me dou por contente por, na única vez que uma cigana me leu a sina, me ter garantido, apenas, que eu nunca iria ter dinheiro.

Até amanhã!

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