segunda-feira, 28 de junho de 2004

Diga bom dia...

Todas as manhãs, quando entro às 7h00, passo por uma mercearia antes das Amoreiras, e reparo numa rapariga que, tal como eu tenho por hábito viajar sempre naquele autocarro, encontro invariavelmente a fazer a mesma coisa, à mesma hora - quer chova ou faça sol.

Estou eu quase a chegar ao trabalho e ela a acartar caixotes de fruta, e outros produtos, de uma camioneta para a mercearia, ou da loja para a rua. Tem sempre o cabelo apanhado no cocoruto, o avental preso atrás das costas e um ar relativamente despachado para aquela hora da manhã. Mal sabe a moça que, enquanto se atarefa a pôr ordem à mercearia, há alguém que repara que, mais uma vez, ela não trocou o trabalho madrugador pelo sono merecido, e que, mesmo sem cartões de banda magnética e modernices afins, continua a marcar o ponto nesta vidinha de labuta sem recompensa à vista, qual formiguinha sem costela de cigarra.

No autocarro de regresso a casa, avisto também muitas vezes um nativo do Casal Ventoso, um daqueles toxicodependentes a quem é difícil, se não impossível, tentar adivinhar um passado, uma família, um momento em que tenha sido feliz, limpo, livre. Às vezes olho para estas pessoas e tento ver além das crostas, da pele retinta, dos cabelos feitos ninhos de rato. Algum dia, todas eles terão sido felizes, ou pelo menos motivo de felicidade para alguém. Todos tiveram o seu dia, o seu momento.

Não sou moralista em relação às drogas, mas duvido que alguém gostasse de ver um filho acabar no Casal Ventoso, com chagas em sangue e um olhar de eterno morto-vivo.

Há sensações que nenhuma demolição ou limpeza de conveniência conseguem afastar. A sensação de que a vida, o que quer que seja, está a passar ao lado, numa linha de comboio paralela, num daqueles transportes que nunca conseguimos apanhar, quer seja por chegarmos atrasados, quer seja porque, se calhar, não estava escrito que o apanhássemos. Tenho este sonho muitas vezes.

Este post não era para ter saído tão sério, mas aconteceu.

Falta dizer que Rui Zink, no seu último livro, põe Jesus Cristo como vítima de uma depressão nervosa com dois milénios de duração, a viver, completamente alienado, no Casal Ventoso. E que o junkie que eu vejo tantas vezes é estranhamente parecido com o Devendra Banhart, um dos mais badalados trovadores da actualidade.

Se estiverem perto de um qualquer centro de cultura ró (loja de discos, BD, livraria, bares...) vão buscar a Mondo Bizarre, que fala nesse e noutros senhores, e com a qual tive, desta vez, a sorte e a honra de colaborar.

É grátis, não deixem passar (est)a oportunidade.

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