A minha avó Laura nunca teve uma conta de Facebook, não sabia o que era um e-mail e duvido que alguma vez tenha visto um computador à frente. Também nunca esteve em Londres, no Rio de Janeiro ou em Nova Iorque: viveu sempre em Entre-os-Rios, a tempo de ver a ponte cair, os oito filhos crescerem, um deles morrer (ainda que nunca lho tenham dito).
Usava sempre um lenço na cabeça e tinha os olhos azuis, que não passou à filha nem à filha desta, que sou eu. Quando era miúda chamava-lhe, na minha parolice citadina de quem achava que Penafiel ficava no fim do mundo, «a avó da aldeia». Uma vez pedi para ficar com um coelho dos dela para brincar e ela mandou logo o meu avô António ir buscar uma sachola. Deixei de comer coelho.
A última vez que me viu já não estava toda cá; ouvia as conversas dos outros sempre com o mesmo sorriso beatífico e as mesmas duas frases: «Obrigada» e «Deus te abençoe». Talvez me tenha reconhecido, pois, apesar de me perguntar coisas que fariam mais sentido se eu fosse a minha irmã, disse-me: «Agora tão cedo não tornas cá». Não tornei.
A minha avó há muito que não falava e não devia sentir a falta de escrever. Mas poucos de nós vamos deixar tanta vida (e um nome tão bonito) neste planeta como a Dona Laura.
Que a música nos acompanha e nos conforta, nos sossega e nos inquieta, é coisa que não serei a primeira a dizer-vos. De ano para ano, contudo, e à medida que se esboroam outras certezas e outros pilares, parece que a importância dos «nossos» discos - aqueles que ouvimos tantas vezes que somos capazes de reconhecer cada canção ao primeiro nano segundo - se agiganta. Parece até impossível que, numa altura em que tão pouca gente compra discos (e eu, que os recebo em bom número, aqui me penitencio também), todos estes alquimistas continuem a fazer magia dos nossos dias. Gostava de poder agradecer a toda a gente abaixo, e a mais alguns: em 2011, eles foram o espelho, e/ou o escape, da minha vida. E tanto a confrontação como a fuga me foram igualmente vitais.
Kurt Vile - Smoke Ring For My Halo
Na véspera de entrevistá-lo, em Paredes de Coura, perguntei a «pessoa amiga» se o conhecia bem. Disseram-me: «É um gajo com uma guitarra; vais gostar». Mal eu sabia como: nem o facto de o artista ter quase assassinado o meu gravador de trabalho com a sua cerveja Guiness me apaga o prazer que tenho tirado de ouvir este disco vezes sem conta desde então. Outro fã explicou, outro dia, que escutou tanto estas canções que já não as ouve, antes as respira. É por aí. (E esta música, em particular, dá a qualquer alma sensível vontade de aprender a tocar guitarra. Ou de viver dentro daquele riffzinho).
Jessica Lea Mayfield - Tell Me
Se o Kurt Vile é um tipo com um guitarra, a Jessica Lea Mayfield é a sua homóloga. Mas não é só isso, claro. Na sua trouxinha leva, também, a voz mais desdenhosa, desinteressada, venenosa que ouvi este ano (e oh se eu ouvi este disco centenas de vezes, sem nunca enjoar). Ouvi-la é imaginá-la num celeiro ou num qualquer cenário «white trash», toda desfrutável e enfadada, a debitar estas palavras medidas com régua e esquadro, fazendo tangentes àquilo que as outras não se atrevem a dizer. Adoro-a.
Fleet Foxes - Helplessness Blues
Eu cheia de medo que a música destes barbudinhos sucumbisse perante a hecatombe de ruído de um festival de verão, e as canções, sempre as canções, a erguerem-se com uma graciosidade ímpar, forte, feroz até, naquela tarde em que só faltou chover um bocadinho. Os Fleet Foxes fazem o mundo parecer um bocadinho mais bonito e quem os ouve sente-se um bocadinho melhor pessoa, também: aqui fica um beijinho para eles, que isto tudo junto, mais a música, não é coisa pouca.
Marcelo Camelo - Toque Dela
Diz ele que, enquanto o anterior Sou/Nós era um disco de água, este é «daquelas plantinhas que crescem nas fachadas dos prédios». Talvez seja: pela insistência, pelo inesperado de ver brotar nos cantos mais improváveis as melodias mais gostosas. Mas há tanto mar na música do Marcelo que todos os seus discos serão, sempre, de água. E isto percebi eu um bocadinho melhor este ano, nas poucas horas que passei no seu Rio de Janeiro, a poucos metros daquele oceano que é o nosso, também, mas que é outra coisa qualquer. Mais funda, com mais entrega, e com muito mais abandono.
Chico Buarque - Chico
Esta semana dei por mim a ouvir, pela enésima vez, o dueto «Se Eu Soubesse». Quando penso que conheço todos os cantos à casa, lá reparo num suspiro que não estava (não estaria?) lá, num trinadinho da guitarra, num lustro especial da melodia. É uma canção tão perfeita que custa a crer que pareça tão simples: ou vice-versa. Tudo no seu sítio, como diziam os Radiohead, mas com tanto coração que todos os lugares-comuns se apagam, dando antes lugar a uma leveza capaz de induzir a levitação. Viver ao mesmo tempo que o Chico Buarque é um grandessíssimo privilégio.
Jonathan Wilson - Gentle Spirit
De vez em quando lá aparece um cowboy a fazer, aparentemente, o mesmo que matilhas de coiotes fizeram antes dele - e a fazer-nos acreditar que é tudo novo, ou pelo menos digno de ser ouvido com tímpanos a estrear. As canções deste disco são quase todas compridas, e é sabido que eu não tenho grande paciência para longas divagações sem remate à vista. Mas é tão gostoso aninharmo-nos nos vales destas músicas que, muita vez, cheguei ao fim dos 70 e tal minutos do disco e voltei ao início.
Laura Marling - A Creature I Don't Know
Tal como a Jessica Lea, a Laura Marling tem pouco mais de 20 anos. O fogo deste disco - já o terceiro da piquena - é, porém, coisa sem idade. Fala do Bem e do Mal, diz a catraia, e gosta de Bob Dylan e de Joni Mitchell, confessa, como se fosse preciso. «The Beast», uma das canções deste álbum, é tão-só o mais impressionante tour de force que ouvi este ano: dir-se-ia que, quando acaba, não sobra pedra sobre pedra e que uma ou outra alma penada poderá queixar-se ao senhorio de falta de condições para continuar a sua assombração. Lamentavelmente, não há no YouTube a versão de estúdio da «The Beast»: aqui fica ela, gélida, mas ao vivo:
St Vincent - Strange Mercy
Nunca gostei da St Vincent tanto como devia, dada a família musical em que a moça se fez mulher. Sempre achei que sim, que havia ali talento; ora bem, eis uma rapariga lindíssima e carismática. Mas foi preciso chegar a 2011 para trazer as canções na cabeça, o que para esta básica que aqui vos escreve é o sinal mais evidente que a transfusão do disco para o meu ser se está a processar com sucesso. Diria que, por fim, a Annie Clark ligou os fios todos que andavam para aí aos caídos e, em vez de curto-circuito, fez fogo de artifício. Mas se calhar já tinha feito antes e eu é que não tinha percebido.
PJ Harvey - Let England
Meus amigos, quem chega a este ponto da carreira e faz um disco como este, prenho de sentido e conceito, sem se deixar consumir pela presunção e arrogância, e ainda oferecendo grandes canções de brinde, é uma grande artista. Não que dúvidas disso houvesse, mas ainda agora, passados bastantes meses, me arrepio a ouvir «The Words That Maketh Murder» ou «The Glorious Land». O que, para uma velha carcaça como eu, é bastante bom sinal.
The Dodos - No Color
Canções primaveris mas nervosentas, a fazer lembrar The Shins mas com carinha própria, e com a Neko Case nos coros. Era complicado eu não gostar deste disco dos Dodos, mas nunca julguei, quando pela primeira vez peguei no CD (arcaico, eu sei), que o fosse ouvir vezes sem conta, embalada pela corrente vagamente eléctrica da coisa e por esta bateria sem necessidade de pacemaker. Dos maiores vícios/vírus que apanhei este ano.
Márcia & JP Simões - A Pele que Há em Mim (Quando o Dia Entardeceu)
Não é um disco, «só» uma canção, mas não é delas que todos dependemos, a certa altura? Esta música já aparecia no primeiro EP da Márcia, de quem muito gosto, e no final deste ano conheceu uma nova vida, uma espécie de sequela com um convidado que também tenho na mais elevada estima: o JP Simões. Mas o que é mais bonito, aqui, e me leva a incluir uma canção no meio da lista dos álbuns, é a forma como este dueto é a perfeita antítese de tudo o que é mau nos duetos: os protagonismos, os egos em disputa, o exibicionismo. Aqui, não há nada a mais, e a menos só mesmo a duração da canção, que apetece ficar a ouvir para sempre. Mais uma vez, para isso existe o botão do repeat. E aquele minuto 2, segundo 5 é das coisas mais mágicas que ouvi este ano, e nos últimos também.
Outros discos e canções de que gostei muitíssimo este ano, independentemente de terem sido lançados, ou não, nos últimos 12 meses: Queen of Denmark, do John Grant; ainda o melhor disco de 2010, Admiral Fell Promises, do Mark Kozelek; Bon Iver, Bon Iver, do próprio; Fala Mansa, do belo Norberto Lobo; a valsa «tim burtoniana» «Em Dias Consecutivos», do Sérgio Godinho; o mais recente do Old Jerusalem; o dulcíssimo These New Countries, do(s) We Trust; aquele dueto «perdido» do Jeff Buckley com a Elizabeth Fraser, «All The Flowers In Time Bend Towards The Sun» (obrigada, Cibele); ainda os Firekites («qual o disco que não consegue apagar do seu leitor de MP3?»); muitas das canções do Algodão do ex-Pac; algumas da despedida dos R.E.M.; o Ryan Adams a fazer versões dos Vampire Weekend e dos Iron Maiden; o gótico sulista imperturbável e rendilhado da querida Emily Jane White. Os Ornatos, outra vez e de volta no ano que vem. Mas a sério, fui ouvir os discos outra vez, como se não os conhecesse de lado nenhum. Que bom perceber que eles falam bem, falam a minha língua, ainda e sempre, desconfio.
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
Sou tão fácil de contentar. Uma música nova, mesmo que seja uma versão, e bem pequenina, de uma canção que não conhecia; um vídeo com um gato cinzento e pessoas que não sabem dançar; uma manta pelas pernas. Olá Inverno.
Mais um bocadinho e entramos «naquela» altura do ano. Não falo do Natal, que como sabemos este ano foi abolido, mas das semanas em que se sucedem as listas de melhores discos da temporada. Eu, que até gosto dessas cromices, à terceira ou quarta listinha já não posso ver as mesmas capas e os mesmos nomes à frente. E, como quase tudo, nesta era de informação redundante e saturada, a sensação é de enjoo.
Mas, no ano passado, houve uma lista que fez algo por mim. Estava em casa quando vi que a revista Mojo tinha escolhido o disco do John Grant (quem?) como o melhor de 2010. Procurei no Youtube um vídeo para ilustrar a notícia - apareceu-me o do «Queen of Denmark», tema-título do álbum, ao vivo nas (sei-o agora) formidáveis sessões Strong Room. Lembro-me de gostar da letra, da voz, da ideia de um homem sentado ao piano a cantar e a berrar como se a sua vida dependesse disso. Pedi o disco emprestado a um colega e, numa primeira audição, lembrei-me do Rufus Wainwright, do Elton John mais vintage, do David Bowie até. Daí para as frente, nas muitas visitas ao Queen of Denmark que se seguiram, já só me lembrei do John Grant: um homem grande e barbudo que, depois de praticamente sucumbir a demónios próprios e alheios, se arrastou - ajudado pelos amigos Midlake - para escrever um disco de uma beleza aterradora.
As drogas, as depressões e o diabo a quatro ajudam ao folclore rock 'n' roll do músico que se redime no último minuto e encontra o reconhecimento quando menos se espera, é verdade. Mas o que menos importa em Queen of Denmark é esse lado artificial, postiço, brilhante. Basta ouvir as letras de «Sigourney Weaver», «It's Easier» ou «Queen of Denmark» para perceber - amando ou odiando - que o que aqui está é um homem a braços com a verdade, a sua verdade. Fã amantíssima de Mark Eitzel, como não havia eu de render-me aos encantos de mais este barbudo confessional? Até me fiz sua amiga no Facebook (ele aceita toda a gente, podem juntar-se também), onde percebi que, além de homem a transbordar talento, o John Grant é boa gente. Não que precisemos de privar ou simpatizar com os nossos artistas favoritos para sancionarmos a nossa paixão - pelo contrário. Mas, quando as canções são pedaços de vida tão em carne crua como o Queen of Denmark, é bom perceber que quem está «do outro lado» tem as mesmas terminações nervosas e o mesmo coraçãozito quente (as mesmas mãos frias?) que nós.
Há algum tempo que não estava tão ansiosa por um concerto como ontem. Em Sintra, e depois de ter tocado em Espinho, o John Grant apareceu constipado. Só me apercebi quando o referiu pois, até então, estava tão pendurada das suas palavras, da sua voz, das suas mãozinhas sapudas a percorrer as teclas do piano que nem reparara na rouquidão. A partir daí, sim: os urros da «Queen of Denmark» saíram todos arranhados, a última «Little Pink House» viveu em esforço, já não houve encore.
Mas, quando me lembrar deste concerto no futuro, sei que o que vou recordar é: a alegria estranha que é ouvir aquelas tiradas sarcásticas, doridas, raspadas do fundo da alma - «you tell me that my life is based upon a lie, i casually tell you i pissed in your coffee» é a que me ocorre sempre - acompanhada por alguns dos meus melhores amigos, a quem passei o disco e o «bichinho», e regozijar com o momento. Que o homem tenha escrito aquelas coisas enquanto chafurdava na lama percebe-se; que tanta gente (como quem diz, podiam ser mais - também de ausências se fez esta noite) se identifique com estes actos de contrição e neles encontre prazer e libertação é prova cabal, desnecessária mas sempre bem-vinda, do poder da música como outra coisa qualquer. Como amor, amizade, empatia e compreensão. Para os dias que correm, já é bastante.
E também me vou sempre lembrar da forma como, já quase afónico, o homem se chegou à boca de palco para, mais do que agradecer os aplausos entusiastas, sorrir perto de nós. Alto e desajeitado, tímido quase, carita rosada e sorriso grato, humilde. Depois de se dar, mostrou-se. (É difícil fazer as duas coisas, artista ou civil). E perante tanta generosidade, ninguém teve coragem de vaiar a falta de encore (ou de «Caramel», a canção que eu tanto gostava de ter ouvido escorrer, caudalosazinha, em Sintra). O homem esteve connosco e connosco deixou o seu escalpe. Não lhe pedimos mais nada.
«Quando eu sonho eu levo a minha força até ao fim E quando o sonho acaba, cego, eu olho fundo para mim E não vejo nada além da tão real ausência de outra luz E só por ela volto à minha cruz, à minha cruz».
Tenho tido muita sorte. Mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor fidelidade face ao original, acabo quase sempre por ouvir ao vivo as minhas músicas predilectas. Depois do impensável - «This is for Portugal», no Campo Pequeno - pensar-se-ia que pouco ou nada faltava na minha caderneta de cromos ao vivo. Que, de resto, o é cada vez menos. Salvo raras excepções - gente que verdadeiramente adoro, surpresas vindas do nada - já não tenho paciência para ver concertos como quem os colecciona. E não perco sono a pensar que não vi fulaninho tal a apresentar, seguindo o guião do «good evening, we love you Portugal», o disco que até gosto de ouvir em casa.
Claro que há casos e casos. Casos de amor e casos de «paciência e fé», como disse o Ryan Adams na Aula Magna, esta semana. O homem dos Whiskeytown apanhou-me entre o apanhar das canas da adolescência (oh meu Deus aquela repinha em permanente tangente sobre a carinha redonda, socorro) e o início de qualquer coisa a que é costume chamar-se idade adulta (mesmo já não vivendo com os meus pais há 15 anos, às vezes ainda me custa a crer em tal estatuto, tão pomposo). O Heartbreaker é um dos meus discos favoritos e é claro como a água que influenciou, quase determinou, o caminho que os meus gostos musicais seguiriam dali para a frente.
O Ryan Adams nunca regulou especialmente bem e, numa obra cheia de canções de partir o coração, há muita palha, muitos tiros ao lado, muita decisão insondável (discos do alter-ego heavy-metal, músicas e pizzas pelo Dia dos Namorados, valha-nos o senhor). Mas é isso - e aquela voz mansamente má, aquela crença inabalável no que os mesmos acordes na guitarra acústica vão fazer pela nossa felicidade... aquela boca rasgada - que fazem dele o Ryan Adams e não um desses songwriters avulsos que nos entram pelo MP3 adentro sem muito para contar ou grandes razões para ficar. O Ryan Adams é, no seu campeonato, uma estrela. E se adorei ver ao vivo a 16 Days, a Oh My Sweet Carolina ou até a mais recente Strawberry Wine - na qual sempre depositei esperança, mas nunca imaginei que fosse transfigurar-se daquela maneira em palco - não nego que todas as piadas, todo o mau feitio, todo aquele sarcasmo com açúcar que foi servindo ao longo de duas horas me fizeram gostar tanto do concerto como as próprias músicas.
Não é obrigatório conhecer as pessoas para gostarmos da música que fazem (pelo contrário!). Mas entrever naquelas tiradas cáusticas ou no - literal - andar aos papéis do Ryan Adams alguma da sua presença, além da música; pressentir naqueles olhares mortíferos dirigidos aos autores de ruído e distracções parte da sua essência, sem a qual, afinal, as suas canções seriam outra coisa qualquer... perceber isso tudo fez muita diferença.
Gostei de passar aquela noite ali. E quando a harmónica da Come Pick Me Up se começou a ouvir, demorei uns segundos a aceitar que fosse mesmo «ela». Que fosse mesmo para mim. Porque se as canções dele só são assim porque ele as escreveu, aquela música só me pôs o nariz, a garganta e os olhos a arder como se cortasse cebola porque fui eu que a ouvi muito ano, fui eu que a embalei desde pequena e nela acreditei até esta semana. Quando finalmente me apareceu à frente e mal a reconheci, por mal aceitar a minha sorte.
Às vezes é bom que a música seja nossa. Só nossa. E naquele momento foi, apesar do tipo que - pela primeira vez numa vida a ver concertos - me mandou calar («Meninas, por favor...»); do mendigo em semi-coma alcoólico esparramado na cadeira, umas filas atrás, de todos os casais que aproveitaram o sarau para pôr o sono em dia. Obrigada, Ryanzito. Aquela mão no peito, à saída para o encore, também foi minha.
Há coisa de duas semanas os The National foram capa do Actual. A foto escolhida para a «montra» era daquelas vampirescas, das quais não gosto - lá dentro é que apareciam como deve ser, frescos e viçosos, entre o verdinho de Brooklyn.
Aguentei a histeria e só em casa li a entrevista, da qual fixei esta frase do Matt Berninger: «Nova Iorque é uma enorme abstracção romântica». Já lá estive e acho que sim, é uma óptima imagem: a Big Apple como projecção dos sonhos de um mundo inteiro, dissonante. O espelho de todos e o ninho de quase ninguém (a rapaziada é de Cincinatti e, aparentemente, continua a sentir-se uma estranha na sua metrópole).
A ideia veio-me à cabeça novamente, dias depois de ler a entrevista: estava no Campo Pequeno, em Lisboa, e até na sola dos pés tinha cerveja. Fiquei num lugar que não era espectacular, com gente mais alta que eu à frente, sem grande visibilidade para o palco e para o joguinho de imagens vídeo que a banda agora traz consigo. Ouvia canções que, com uma notável, inesquecível e inacreditável excepção (*), já ouvi, saltei e gritei centenas de vezes. E, contudo, sentia-me feliz, estupidamente feliz. Longe do mundo que corre lá fora, paralelo e quadrado; esquecida da fileira de chaguinhas e preocupações de todos os dias; vivendo, enfim, a minha própria abstracção romântica, como se a vida pudessem ser duas horas de canções/hinos/actos de contrição, viagens à lua sem regresso marcado, sempre com a mesma garganta apertada e as mesmas asinhas nos pés.
«So tall I take over the street, with high beams shining on my back, a wingspan unbelievable, I'm a festival, I'm a parade»
Olhei para o lado neste momento tão precioso e tive companhia no gesto dos braços abertos e deditos espetados - «raise our heavenly glasses to the heavens» - de alguém que pouco me conhece mas que, na véspera, me dizia que eu havia de ir mais vezes à terra onde gostam de mim. A noite anterior. Ou a diferença que faz estar (demasiado) longe do palco, arriscando desligar-me dele por segundos, minutos quem sabe. Olhava para baixo, no Coliseu do Porto, e quase via a coisa de fora. Só me ocorria: o poder das canções. Uma banda de gente normal põe gente normal a descabelar-se com histórias não menos banais. Não faria sentido num talk show à americana, mas ali ferve, arde, mesmo quando, em palco, o fogo parece intermitente.
Vejo aquelas gargantas acesas - «I'm talking ace this morning, I'm talking ace» - e penso: estes cinco são uns dos últimos a permitir que cantemos assim, que nos entreguemos no altar das canções, que nos encontremos algures entre o ajoelhar e o salto. Que bom que também gostem de nós.
Na noite seguinte não houve ocasião para pensar. As canções (sempre elas, as bandidas) seguiam-se com estrondo, de forma quase caótica, como se o arranque de cada uma apagasse a cauda incandescente da anterior. Naquele momento, naquele centímetro quadrado de chão e (pouco) ar, só aquela importava.
Dias antes lera que «é preciso estômago para aguentar música tão sombria e deprimente». Olho para as primeiras filas com olho de falcão e vejo gente descontrolada com a chegada da Apartment Story - «wel'll be allright, we have our looks and perfume» -, da Bloodbuzz Ohio - «I still owe money», sim FMI, é verdade -, da Conversation 16 e só na About Today admito olhar para os pés. O resto do tempo é passado a chegar mais perto do tecto semi-aberto do Campo Pequeno, sem pensar em tentar explicar o que já não cabe em argumentos. A tentar por todos os meios, também, não deixar a voz descarrilar de emoção no a capella final - «all the very best of us string ourselves up for love» sai um bocado tremido para aqueles lados.
E se não falo dos meus habituais e insubstituíveis companheiros de aventura - vocês os dois sabem quem são - é porque já não há, para eles, palavras. Pois eles transformaram-se nelas. Nas palavras, nos argumentos onde isto tudo já não cabe.
(*) - foram só precisos quatro anos. Was in a train under the river when I remembered what. Obrigada! (E agora?)
Um dia que me convidem para responder a um questionário de revista - e o tema não sejam os Homens da Luta - tenho de me lembrar que a resposta correcta à questão «qual o seu som favorito?» é: o trinado das andorinhas rasgando os céus de Abril a Setembro, mais coisa menos coisa.
Uma vez fizeram esta pergunta ao Hugh Laurie, num shóu da televisão, e ele disse: «o som de uma guitarra acústica mal tocada». Que o fazia sentir-se como um labrador a ser acariciado na barriga, e que não sabia porquê.
Eu acho que sei porque é que gosto tanto daquele chilrear histérico, mas breve, das andorinhas. Quando era miúda costumava ir para o portão de casa (dos meus pais & dos meus avós) ver passar as senhoras da fábrica (Coats & Clark). Saíam, as trabalhadoras, ao fim da tarde e eu e a Dona Maria, minha avó, ficávamos à porta do número 81 a vê-las, em passo apressado e carregando os seus haveres em saquitos, rumo a suas casas.
Era o entretém possível e é natural que esta fosse uma actividade de Primavera-Verão, o que explica que a banda-sonora que lhe associe seja aquele som agudo, alegre, efémero das andorinhas, simultaneamente um anúncio - do bom tempo que faria no dia seguinte! - e uma despedida - da jornada a que diziam adeus, no regresso, também elas, aos seus ninhos.
Ouvi-las agora, volvidas que estão umas boas bodas de prata, traz-me de volta esses dias de final alaranjado mas também a sensação de que o essencial perdura; as andorinhas, ainda longe da extinção, espero eu; os dias de calor; as estações em lógica rotação (apesar das ocasionais tempestades de granizo); as pessoas em movimento perpétuo, previsível.
Ou então só existem já em mim. Pesquisando por «andorinha» no Google, logo a maquineta de pesquisa me pergunta se não quero antes saber as últimas sobre os «andróides». Às vezes os meus quase 33 anos sabem-me a muitos, muitos mais. Mesmo sem coroa de espinhos.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
Tenho uma impressionante falta de sentido de humor, para alguém que, uma vez a cada 30 luas, até diz meia coisa com piada.
Com raríssimas excepções, humoristas portugueses de nova geração aborrecem-me de morte, isto quando não me apetece bater-lhes com uma tábua. Como diria a Lady Oh My Dog, «era metê-los numa jaula e eu a picá-los com um pau». Não é complicado ser um destes «wunderkinder» do humor pt: ao ar de enjoo permanente (eles chamar-lhe-ão, certamente, blasé, pois sabem línguas) juntam-se piadas (ou esboços de, que chegar mesmo à gargalhada, além de parecer mal e ameaçar o estilo, dá trabalho) com a mesma espessura das dos Malucos do Riso. No lugar de trocadilhos com a vida rural, em que portugueses de norte a sul falam achim, como se todos os sotaques se resumissem ao das Beiras, esta «nova gera» coloca referências cosmopolitas. Eles são sofisticados: já foram às grandes urbes internacionais, comem sushi e descarregam os novos programas do Conan O'Brien no próprio dia. E fazem piadas sobre a actualidade tão básicas, repetitivas, previsíveis e ocas como as dos Malucos do Riso, sim, mas com aquela capinha asséptica e modernaça de um iPod a disfarçar a falta de ideias.
Isto sou eu mal-disposta por ter tido de me levantar mais cedo e apanhar com um programa matinal de rádio, guarnecido com sketches dos Homens da Luta («A Ana deve ser uma gaja muito boa, pois se tem tanta dívida sobre ela! Dívida soberana!» - é este o humor esclarecido e politizado que temos) e referências diárias, quase ao jeito de uma rubrica fixa, sobre a Renatada Seabrada que animou este começo de ano. OK, é material fácil de encontrar, mas diria que há inspirações mais humanas do que um crime com bastante sangue e desgraça eterna distribuída por pelo menos duas famílias.
Morrer na praia é desistir de ouvir o último disco (triplo, interminável, pretensioso nas - mais de duas - horas) da Joanna Newsom a três músicas do fim. Arre, eu até gostava da moça quando ela cantava como um esquilo, e se calhar logo à noite até saio do CCB rendida àquela beleza pérfida de tão angelical, mas este «Have One on Me» não voltarei a ouvir nem que me paguem. Quer dizer...
Ele há quem diga que os blogues morreram. E é verdade: a este, por exemplo, já só vêm os meus amigos mais amorosos, mais insistentes e mais crentes no milagre de um novo post. Isto é, todos os meus amigos. Longe vão os tempos em que o Sofá Verde recebia visitas dos quatro cantos do mundo - brasileiros que não conseguiam passar mais uma noite de insónias sem saber onde comprar «(capas para) sofá verde»; fãs de boa televisão em busca de informação sobre o Dempsey & Makepeace, vindos da Polónia, onde a série deve ter estreado em 2008; coisas estruturais desse género.
Mas quando nada o faria esperar, eis que outro dia - ou para ser mais verdadeira, outra noite, daquelas em que qualquer coisa me parece mais fixe do que ir dormir - sigo, no feicebú, esse grande chacinador de blogues, o link botado por uma amiga. Alguém que compara a Tilda Swinton ao Thom Yorke, olha que engraçado, eheh. Em boa hora satisfiz esta minha curiosidade tola, porque foi assim que encontrei o que já não cuidava existir: um óptimo blogue! Até me fazem usar pontos de exclamação, horror e mil perdões se vos feri os tímpanos.
Resumindo, que se calhar devia mesmo ir dormir: a Lady Oh My Dog já tem o corrosivo, hilariante, marabilhoso blogue há um ror de anos e eu, como sempre, a dormir na forma. Mas não tem mal, pois assim posso ir lendo os posts em ordem cronológica inversa, como quem aprecia um bom livro (de trás para a frente? Talvez esta analogia não seja a melhor, afinal). Tal como um bom livro, qualquer que seja a ordem de leitura, este blogue tem sexo, um uso criterioso e criativo de palavrões e numerosas questões fracturantes, desde a solidão urbana a reflexões geracionais, passando por crises de hipocondria, bolachas Oreo, maquilhagem e pecados associados. Enquanto não chegar a 2007, altura em que nasceu a Lady Oh My Dog, Clarice vai ter de esperar.
Bem ao meio, uma cama muito alta - a minha avó sempre detestou camas baixas e devia mesmo achar que a minha, que me amparou os costados desde os 4 aos 18 anos, mais parecia um pequenito batel. Ao fundo, um daqueles guarda-fatos de madeira escura, à antiga, carregado de casacões austeros e bolas de naftalina (do tempo em que as ditas ainda não faziam cancro, claramente, que ninguém na família - bate na madeira, bate - apanhou o bicho). E ao lado direito, rumo a uma das janelas para o quintal, uma cómoda comprida onde se alinhavam, sem grande ordem, latas douradas daquela laca que a minha avó usava em exclusivo (e até lhe ofertávamos pelo Natal), fotos do meu avô quando era novo e usava óculos de massa, uma ou outra caixita de jóias. Em Maio recebíamos também aquele santuário portátil que o pessoal da igreja deixava em casa dos fiéis no Mês de Maria, cujo nome me escapa por completo mas que chegou a conviver pacificamente, olhai que lindo diálogo ecuménico, com o Galheteiro de David e respectivas velinhas, de quando a minha tia se lembrou de converter ao Judaísmo (e ainda ia a casa dos pais ao fim-de-semana).
O quarto da minha avó era assim. E depois havia, mais perto da janela e com uma foto mais pequenita, tipo passe, encaixada em baixo, uma moldura onde os meus pais - ou uma versão setentista deles, calças à boca de sino, óculos de mafioso e tudo - desfilavam Aliados abaixo com uma bandeira. De um partido. Antes do 25 de Abril, os meus pais, que hoje não partem um prato, atravessaram a Ponte D. Luiz, que na altura poucas mais haveria, para lutar por certas e determinadas coisas.
O meu avô, que eu muito adorava, nutria simpatia pelos tempos da «outra senhora» e é da sua autoria a inolvidável frase para o meu pai, em resposta a uma carta que ele lhe escreveu de Moçambique, durante a guerra colonial: «Antes prefiro que voltes sem uma perna do que com o vício do jogo» (o filho acabara de confessar-lhe o terrível hábito de jogar às cartas entre combates). A minha avó, quando a senilidade ainda parecia longe, uma vez foi votar e demorou tanto que o meu avô lhe ralhou. «Então», respondeu ela muito pimpona. «Tive de escrever o meu nome todo! Em todas as linhas [de todos os candidatos]!». Ela nunca foi à escola mas teve um senhor que a ensinou a ler, na casa onde começou a trabalhar como criada, ainda era uma criança.
Ontem a foto dos meus pais a descer a Avenida dos Aliados assombrou-me o Domingo. Pela primeira vez devia ter votado em Lisboa, onde vivo há quase 15 anos, mas onde só agora me recenseei. Não votei, porque não consegui perceber onde fazê-lo (Lisboa > Benfica é um bocado vago, senhores da CNE), mas essa é, como se costuma dizer no estudo das guerras, apenas a causa próxima. A verdadeira é que não sabia em qual dos quadradinhos botar a cruz. Não queria dar o meu voto, frugal e tremidinho, a nenhum daqueles senhores. E apesar de, ao longo da tarde, ter entabulado conversações com entes queridos que, ao contrário de mim, levantaram o rabo para ir votar - neste ou naquele fulano - à hora de fecho das urnas, sentimento de culpa e tudo, encontrava-me a esfregar a banheira e metodicamente limpar o resto da casa-de-banho.
Ainda me lembro de quando saía da pequena escola primária de Oliveira do Douro onde sempre votei com a sensação de ter crescido uns quantos centímetros - em cidadania, pertença à sociedade, eu sei lá. Ontem, simplesmente não consegui importar-me o suficiente. E sei que isso é (ainda) mais triste que os olhinhos dos meus pais, desapontados com esta descendência e com este país, naquela foto a preto e branco que o desmantelamento da casa dos meus avós deve ter mandado para o galheiro.
(As boas notícias são que consegui resistir à tentação de anular o voto escrevendo no boletim o meu chavão favorito, por se aplicar a tudo sem dizer nada: «Por isso é que este país está como está»).
Lembro-me do dia em que o Kit chegou a casa. Saiu da cesta de uma senhora da Anadia, que vendia uma ninhada de cachorros na «Feira dos Passarinhos», no Porto, directamente para as mãos do meu pai que, regressado de uma bem regada reunião da tropa, pagou pelo bicho 10 contos. Referia essa maquia carinhosamente sempre que, com frequência, o animal fazia asneiras ou dava despesa («Dei eu 10 contos por ele, se tivesse posto o dinheiro a render, etc»).
O Kiko, nosso/meu primeiro cão, tinha morrido de velhice há coisa de dois anos e eu e a minha irmã, muito infantis na nossa adolescência, queríamos à força toda um novo animal para estimar. Os animais sempre foram muito bem estimados lá em casa, dos reis caninos à tartaruga que o Kit abocanhou e cuja carapaça os meus pais remenderam com fita gomada da grossa. Viveu muitos anos depois desse conserto.
Ao contrário de mim e da minha irmã, a minha mãe fazia questão de dizer que não queria mais animais lá em casa. Mas, quando o meu pai, ainda vagamente alegre da reunião da noite anterior, entrou pela casa da minha avó adentro com o pequenito (muito pequenino) ao colo, de imediato deixou escapar um «aawww!» que não deixou margem para dúvidas: estava selado o amor entre os dois, para sempre.
Assustado, o Kit, que na altura nem nome tinha, fez chichi. Quando chegou a casa para ser fotografado, pela primeira vez, no sofá, fez chichi outra vez. E acho que no carro, entre casas, também se aliviou. Era um bebé e tudo foi limpo com paciência e até alguma ternura.
No ano seguinte vim para Lisboa. Cada vez que ia a casa o cão dispensava-me a mais eufórica recepção possível: desde guinchos histéricos a mordidelas de amigo, não faltava nada - bem, talvez um fogo de artifício - para ilustrar como não me esquecera. Às vezes, quando eu já regressara a Lisboa, cheirava a roupa que eu esquecia no quarto e abanava o rabinho, conta a minha irmã.
A minha mãe chegou a lamentar suspeitar que eu tivesse mais saudades do cão do que dela. Pela nossa parte, eu e a minha irmã acreditávamos piamente que o Kit era «o filho favorito». No meio dos falsos ciúmes, o cão era uma cola tão valiosa como outra qualquer naquela família.
Há uns três anos o veterinário ouviu a «tosse cardíaca» do Kit e disse à minha mãe para se «preparar». À semelhança da minha avó, contudo, que resistiu 97 anos, o cão que muitos confundiram com uma cadela e não terá deixado descendência aguentou. Mais um ano, outro, outro ainda. Cada vez mais magro, doente, mouco. Nos últimos dias deixou de ver, metia-se em armários e corria o risco de voltar a cair escadas abaixo.
A última vez que fui a casa tive de ser eu a procurá-lo. Já não me ouvia chegar e, de olhar perdido no quarto dos meus pais, só me reconheceu quando me aproximei e lhe acariciei o focinho. Com uma capinha de malha que a minha mãe lhe tricotou pelas costas, não consoou - nunca gostou de peixe, e lá em casa come-se bacalhau a 24. Mas no dia seguinte jantou com prazer umas fatias de carne assada. A minha mãe agarrava-se a esta falta de fastio como sinal possível de uma saúde que já não existia.
O chichi, tal como no primeiro dia, era novamente uma constante. No quarto de banho e marquise acumulavam-se os jornais antigos pelo chão, para minimizar os danos. Ninguém lhe ralhava, já, mas a paciência e ternura com que se limpava o bebé deu lugar à paciência e resignação de quem espera o inevitável.
Hoje às 20h10, o Kit começou a andar às voltas sobre si mesmo. Os meus pais levaram-no para a varanda, para apanhar ar, mas a minha mãe soube que não era esse o problema. Já lá fora, o cão deu um grito e partiu.
Apalavrado estava já um enterro na casa dos meus padrinhos, de quintal generoso. A minha irmã, que não quis ver o Kit sem vida, tratou de tudo e os meus pais ajudaram o meu tio a depositar o cachorrinho debaixo de uma árvore de flores vistosas, no mesmo jardim onde repousam outros notáveis cães da mesma família (Charlie e Nico, lembro-me de repente).
A minha mãe estranhou que o corpo aparentemente vazio do cão lhe pesasse tanto nos braços, a caminho do funeral.
«Ainda hoje tinha lavado a caminha e as mantas dele», disse-me. «Ficaram lavadas».
Enquanto escrevo isto, um cão ladra lá fora, perdido no silêncio da noite. Sei que os cães nunca morrem na nossa memória, porque ainda hoje sou capaz de sonhar com o Kiko. E enquanto ouvir a Mary chamar pela sua pequenita, ou a Cibele a contar-me como o Benny e a Vivi subiram para a banca da louça e de lá derrubaram tupperwares e facas, sei que o Kit, ou a ideia dele, também continua viva.
Em certas manhãs, há um batalhão de castiças personagens que, indiferentes ao toque do despertador, continuam por efémeros mas intensos segundos a sua vida onírica. São gente dos sonhos, cujo discurso e acção obedece a essa mesma lógica (ou falta dela), mas por vezes custa-lhes a perceber que a bola de sabão em que vivem já rebentou. Nessa altura mais vale eu não dizer nada porque, apesar de já ter os olhos abertos, é provável que o que me saia da boca sejam palavras destes pequenos gremlins.
Não admira que, pesquisando por «Elvis Perkins» no Google, ele (o Google) nos sugira logo a letra da «While You Were Sleeping», uma das melhores músicas do primeiro álbum. É dos «tours de force» mais bonitos que me lembro de ouvir/ler e uma das poucas letras que, literariamente (passe a redundância), se aguentariam sem música num qualquer livro de poesia. Digo eu. Vejam vocês.
«While you were sleeping the babies grew the stars shined and the shadows moved time flew, the phone rang there was a silence when the kitchen sang its songs competed like kids for space we stared for hours in our maker's face they gave us picks said go mine the sun and go gold and come back when you're done
While you were sleeping you tossed, you turned you rolled your eyes as the world burned the heavens fell, the earth quaked i thought you must be, but you weren't awake no, you were sleeping you ignored the sun you grew your power garden for your little ones and you found brides for them on christmas eve they hung young cain from the adam trees and danced
While you were sleeping i tossed and i turned til i closed my eyes but the future burned through the planet turned a hair gray as i relived the day while you were sleeping the money died machines were harmless and the earth, she sighed through the wind you slept sound and gravity caught my love around the ocean rose, sang about decay while witches flew and the mermaids stayed full of dreams, you overslept and keeping with quiet, through the walls i crept i walked on tiptoe, sent darkness swirling over all the kitchen in the early morning i'll never catch up to you who sleeps so sound my arms are useless my heart beats too loud to go to sleep my mind's too proud to bow out
While you were sleeping the time changed all your things were rearranged your vampire mirrors face to face they saw forever out into space and found you dreaming in black and white while it rained in all the colors of the night i watched the tvs memories championships vanished to sea could it be, my honey between you and me so i waited for the riddled sky to dissolve again by sunrise and i've made a death suit for life for my father's ill widowed wife did you have that strangest dream before you woke cos in your gown you had the butterfly stroke did it escape you like some half told joke? when you reached for your plume of smoke it'll haunt you, my honey bee anyone who is anyone has that same dream were you falling were you flying and were you calling out or were you dying thank god you're up now let's stay this way else there'll be no mornings and no more days cos when we're dreaming our babies grow the sun shines and the shadows flow time flies the phone rings there is a silence and everybody tries to sing».
... do Roofy e de todos os que, como nós, se deixam comover com quatro patitas cheias de pêlo e aquela «burrice cheia de doçura».
«Não posso ver um cão na rua, nem gosto de olhar. Você não sabe que revelação foi para mim ter um cão, ver e sentir a matéria de que é feito um cão. É a coisa mais doce que eu já vi, e cão é de uma paciência para com a natureza impotente dele e para a natureza incompreensível dos outros... E com os pequenos meios que ele tem, com uma burrice cheia de doçura, ele arranja um modo de compreender a gente de um modo directo» , Clarice Lispector em carta às irmãs, citada na biografia Uma Vida.
Outra coisa que a Clarice faz muito bem é escrever sobre cães.
«Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa», in O Crime do Professor de Matemática