quinta-feira, 15 de abril de 2004

A greve, e a garra, da Carris

Como sabem todos os pobres e remediados de Lisboa, a Carris não é flor que se cheire, nem donzela em cuja fidelidade convenha acreditar. Chega tarde e a más horas, lava-se pouco, e ainda se dá ares de grande importância, anunciando a sua falta de comparência várias vezes ao mês. O pior é que, à falta de melhor, lhe sentimos a falta.

Ontem, depois de caminhar de Sete Rios ao Califa, em Benfica (dizem-me que é muito... mas garanto que se faz bem!), e cumprida a minha missão por tais terras mouras, tentei regressar a casa. Visto que a birra da Carris, desta vez, se estendia das 11h às 20h, esperei que aparecessem aquelas camionetas de turismo, conduzidas por divertidos free lancers, que nestas alturas fazem as vezes das mais populares carreiras amarelas e cor-de-laranja.

O substituto do 54 apareceu pouco tempo depois de eu chegar à paragem. Toda contente, subi as escadas, imaginei-me numa excursão por paragens longínquas e esgueirei-me para os últimos bancos da viatura. Passados poucos minutos, o primeiro sururu: cagaçal lá à frente, mas estava demasiado cansada para tentar perceber porquê. Eis senão quando o condutor, na voz mais parolo-castiça que consigam imaginar, faz uso do microfone usado nos passeios turísticos para partilhar connosco os seguintes pensamentos:

«Eu pedia aos xenhores passageiros que desimpedissem as saídas... Quer dizer, se não vão sair, para que é se põem a estorvar a porta?! Com tantos lugares que vagaram há duas ou três paragens... sinceramente, caraças!»

Adorei o assomo de franqueza, com amplificação e surround system. No final da viagem, durante a qual um rapaz se tentou repetidamente roçar em mim, e uma criança berrou que as janelas de uma casa do Príncipe Real «são iguais às do Aladino!!», saí no Cais do Sodré e apanhei o placebo do 15. Camioneta não só de turismo, como de luxo, tinha o piso inferior fechado, o que significa que os passageiros tinham de subir dois lances de escadas para alapar o cu. Lá em baixo, junto ao motorista, seguiam algumas mulheres, divertidas com as graçolas do senhor. Uma espécie de vídeo de hip-hop, portanto, com a diferença de que em vez de limusine tínhamos a camioneta, e senhoras com idade para serem mães das jovens esculturais que geralmente ornamentam esses telediscos.

No Calvário, e sem justificação aparente, o rapaz que conduzia a viatura fez, também, uso do sistema de comunicação, dizendo ao microfone, num estilo jovial e bem-disposto:

«Vá lá, eu sei que isto é chato, mas as greves dão-lhes para isto... Podia dar-lhes para pior... Aproveitem e vão todos juntinhos uns aos outros, está bem? Pronto, obrigado!»

Eu acho que há mais talento de comunicador ao volante de alguns transportes do que nas rádios que os senhores insistem em sintonizar.

Quando chegou a minha vez de abandonar o barco, perdão, a camioneta do amor, pedi ao moço que abrisse a porta, se faz favor, já que não sabia onde estava a campaínha (se é que a havia).

«Não sei se abro!», respondeu ele, rindo trocista, com a cumplicidade das groupies de serviço.

Vi que só me restava entrar na brincadeira:

«Se não quer abrir a porta na paragem, suba ali aquelas travessas e deixe-me à porta de casa, se faz favor».

«Ah, isso não, isso dá muito trabalho!», continuou ele a rir. «Mas não sei se abro, não sei se abro...»

Abriu. Mas não sem antes estender o boné que levava na cabeça e pedir: «Vá lá, dê-me lá qualquer coisinha para a ajuda».



Ainda eu me queixava dos condutores dos transportes alternativos que se limitavam a não conhecer o percurso do autocarro que lhes calhava guiar, com a indicação dos utentes, pelas ruas da cidade.


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