terça-feira, 31 de maio de 2011

Velvet ropes around you, if that's what you need

Há coisa de duas semanas os The National foram capa do Actual. A foto escolhida para a «montra» era daquelas vampirescas, das quais não gosto - lá dentro é que apareciam como deve ser, frescos e viçosos, entre o verdinho de Brooklyn.

Aguentei a histeria e só em casa li a entrevista, da qual fixei esta frase do Matt Berninger: «Nova Iorque é uma enorme abstracção romântica». Já lá estive e acho que sim, é uma óptima imagem: a Big Apple como projecção dos sonhos de um mundo inteiro, dissonante. O espelho de todos e o ninho de quase ninguém (a rapaziada é de Cincinatti e, aparentemente, continua a sentir-se uma estranha na sua metrópole).

A ideia veio-me à cabeça novamente, dias depois de ler a entrevista: estava no Campo Pequeno, em Lisboa, e até na sola dos pés tinha cerveja. Fiquei num lugar que não era espectacular, com gente mais alta que eu à frente, sem grande visibilidade para o palco e para o joguinho de imagens vídeo que a banda agora traz consigo. Ouvia canções que, com uma notável, inesquecível e inacreditável excepção (*), já ouvi, saltei e gritei centenas de vezes. E, contudo, sentia-me feliz, estupidamente feliz. Longe do mundo que corre lá fora, paralelo e quadrado; esquecida da fileira de chaguinhas e preocupações de todos os dias; vivendo, enfim, a minha própria abstracção romântica, como se a vida pudessem ser duas horas de canções/hinos/actos de contrição, viagens à lua sem regresso marcado, sempre com a mesma garganta apertada e as mesmas asinhas nos pés.

«So tall I take over the street, with high beams shining on my back, a wingspan unbelievable, I'm a festival, I'm a parade»

Olhei para o lado neste momento tão precioso e tive companhia no gesto dos braços abertos e deditos espetados - «raise our heavenly glasses to the heavens» - de alguém que pouco me conhece mas que, na véspera, me dizia que eu havia de ir mais vezes à terra onde gostam de mim. A noite anterior. Ou a diferença que faz estar (demasiado) longe do palco, arriscando desligar-me dele por segundos, minutos quem sabe. Olhava para baixo, no Coliseu do Porto, e quase via a coisa de fora. Só me ocorria: o poder das canções. Uma banda de gente normal põe gente normal a descabelar-se com histórias não menos banais. Não faria sentido num talk show à americana, mas ali ferve, arde, mesmo quando, em palco, o fogo parece intermitente.

Vejo aquelas gargantas acesas - «I'm talking ace this morning, I'm talking ace» - e penso: estes cinco são uns dos últimos a permitir que cantemos assim, que nos entreguemos no altar das canções, que nos encontremos algures entre o ajoelhar e o salto. Que bom que também gostem de nós.

Na noite seguinte não houve ocasião para pensar. As canções (sempre elas, as bandidas) seguiam-se com estrondo, de forma quase caótica, como se o arranque de cada uma apagasse a cauda incandescente da anterior. Naquele momento, naquele centímetro quadrado de chão e (pouco) ar, só aquela importava.

Dias antes lera que «é preciso estômago para aguentar música tão sombria e deprimente». Olho para as primeiras filas com olho de falcão e vejo gente descontrolada com a chegada da Apartment Story - «wel'll be allright, we have our looks and perfume» -, da Bloodbuzz Ohio - «I still owe money», sim FMI, é verdade -, da Conversation 16 e só na About Today admito olhar para os pés. O resto do tempo é passado a chegar mais perto do tecto semi-aberto do Campo Pequeno, sem pensar em tentar explicar o que já não cabe em argumentos. A tentar por todos os meios, também, não deixar a voz descarrilar de emoção no a capella final - «all the very best of us string ourselves up for love» sai um bocado tremido para aqueles lados.

E se não falo dos meus habituais e insubstituíveis companheiros de aventura - vocês os dois sabem quem são - é porque já não há, para eles, palavras. Pois eles transformaram-se nelas. Nas palavras, nos argumentos onde isto tudo já não cabe.

(*) - foram só precisos quatro anos. Was in a train under the river when I remembered what. Obrigada! (E agora?)

domingo, 1 de maio de 2011

Um dia

Um dia que me convidem para responder a um questionário de revista - e o tema não sejam os Homens da Luta - tenho de me lembrar que a resposta correcta à questão «qual o seu som favorito?» é: o trinado das andorinhas rasgando os céus de Abril a Setembro, mais coisa menos coisa.

Uma vez fizeram esta pergunta ao Hugh Laurie, num shóu da televisão, e ele disse: «o som de uma guitarra acústica mal tocada». Que o fazia sentir-se como um labrador a ser acariciado na barriga, e que não sabia porquê.

Eu acho que sei porque é que gosto tanto daquele chilrear histérico, mas breve, das andorinhas. Quando era miúda costumava ir para o portão de casa (dos meus pais & dos meus avós) ver passar as senhoras da fábrica (Coats & Clark). Saíam, as trabalhadoras, ao fim da tarde e eu e a Dona Maria, minha avó, ficávamos à porta do número 81 a vê-las, em passo apressado e carregando os seus haveres em saquitos, rumo a suas casas.

Era o entretém possível e é natural que esta fosse uma actividade de Primavera-Verão, o que explica que a banda-sonora que lhe associe seja aquele som agudo, alegre, efémero das andorinhas, simultaneamente um anúncio - do bom tempo que faria no dia seguinte! - e uma despedida - da jornada a que diziam adeus, no regresso, também elas, aos seus ninhos.

Ouvi-las agora, volvidas que estão umas boas bodas de prata, traz-me de volta esses dias de final alaranjado mas também a sensação de que o essencial perdura; as andorinhas, ainda longe da extinção, espero eu; os dias de calor; as estações em lógica rotação (apesar das ocasionais tempestades de granizo); as pessoas em movimento perpétuo, previsível.

Ou então só existem já em mim. Pesquisando por «andorinha» no Google, logo a maquineta de pesquisa me pergunta se não quero antes saber as últimas sobre os «andróides». Às vezes os meus quase 33 anos sabem-me a muitos, muitos mais. Mesmo sem coroa de espinhos.

Tempos idos

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