Tenho tido muita sorte. Mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor fidelidade face ao original, acabo quase sempre por ouvir ao vivo as minhas músicas predilectas. Depois do impensável - «This is for Portugal», no Campo Pequeno - pensar-se-ia que pouco ou nada faltava na minha caderneta de cromos ao vivo. Que, de resto, o é cada vez menos. Salvo raras excepções - gente que verdadeiramente adoro, surpresas vindas do nada - já não tenho paciência para ver concertos como quem os colecciona. E não perco sono a pensar que não vi fulaninho tal a apresentar, seguindo o guião do «good evening, we love you Portugal», o disco que até gosto de ouvir em casa.
Claro que há casos e casos. Casos de amor e casos de «paciência e fé», como disse o Ryan Adams na Aula Magna, esta semana. O homem dos Whiskeytown apanhou-me entre o apanhar das canas da adolescência (oh meu Deus aquela repinha em permanente tangente sobre a carinha redonda, socorro) e o início de qualquer coisa a que é costume chamar-se idade adulta (mesmo já não vivendo com os meus pais há 15 anos, às vezes ainda me custa a crer em tal estatuto, tão pomposo). O Heartbreaker é um dos meus discos favoritos e é claro como a água que influenciou, quase determinou, o caminho que os meus gostos musicais seguiriam dali para a frente.
O Ryan Adams nunca regulou especialmente bem e, numa obra cheia de canções de partir o coração, há muita palha, muitos tiros ao lado, muita decisão insondável (discos do alter-ego heavy-metal, músicas e pizzas pelo Dia dos Namorados, valha-nos o senhor). Mas é isso - e aquela voz mansamente má, aquela crença inabalável no que os mesmos acordes na guitarra acústica vão fazer pela nossa felicidade... aquela boca rasgada - que fazem dele o Ryan Adams e não um desses songwriters avulsos que nos entram pelo MP3 adentro sem muito para contar ou grandes razões para ficar. O Ryan Adams é, no seu campeonato, uma estrela. E se adorei ver ao vivo a 16 Days, a Oh My Sweet Carolina ou até a mais recente Strawberry Wine - na qual sempre depositei esperança, mas nunca imaginei que fosse transfigurar-se daquela maneira em palco - não nego que todas as piadas, todo o mau feitio, todo aquele sarcasmo com açúcar que foi servindo ao longo de duas horas me fizeram gostar tanto do concerto como as próprias músicas.
Não é obrigatório conhecer as pessoas para gostarmos da música que fazem (pelo contrário!). Mas entrever naquelas tiradas cáusticas ou no - literal - andar aos papéis do Ryan Adams alguma da sua presença, além da música; pressentir naqueles olhares mortíferos dirigidos aos autores de ruído e distracções parte da sua essência, sem a qual, afinal, as suas canções seriam outra coisa qualquer... perceber isso tudo fez muita diferença.
Gostei de passar aquela noite ali. E quando a harmónica da Come Pick Me Up se começou a ouvir, demorei uns segundos a aceitar que fosse mesmo «ela». Que fosse mesmo para mim. Porque se as canções dele só são assim porque ele as escreveu, aquela música só me pôs o nariz, a garganta e os olhos a arder como se cortasse cebola porque fui eu que a ouvi muito ano, fui eu que a embalei desde pequena e nela acreditei até esta semana. Quando finalmente me apareceu à frente e mal a reconheci, por mal aceitar a minha sorte.
Às vezes é bom que a música seja nossa. Só nossa. E naquele momento foi, apesar do tipo que - pela primeira vez numa vida a ver concertos - me mandou calar («Meninas, por favor...»); do mendigo em semi-coma alcoólico esparramado na cadeira, umas filas atrás, de todos os casais que aproveitaram o sarau para pôr o sono em dia. Obrigada, Ryanzito. Aquela mão no peito, à saída para o encore, também foi minha.
Há 13 anos