Uma vez por outra, consigo perceber o que é que as pessoas têm na cabeça quando pensam que eu tenho um emprego muito excitante. Na maioria dos dias é um trabalho como qualquer outro trabalho sem horários certos, grande estabilidade ou remuneração exuberante. Até ao dia em que me sento frente à Diana Krall e ela me elogia efusivamente as sapatilhas Nike compradas nos saldos há mais de um ano (e sabe Deus o que me custa andar com elas; aleijam-me à frente e só por orgulho - afinal, ainda custaram 30 euros - não me livrei delas).
Mas eu devia saber que ter uma diva do jazz a desfazer-se em mimos perante a minha modesta presença («Deves ser muito boa pessoa», diz ela a certa altura, não me perguntem porquê) era apenas a continuação natural de um dia que, desde cedo, prometera.
À saída da camioneta, cruzei-me com uma senhora que trabalha no mesmo edifício que eu e que, apesar de não conhecer o seu nome ou função, certa vez me deu boleia de táxi.
Desta vez, apeteceu-lhe contar que, no café onde tomara o pequeno-almoço, serviu de intérprete a uma senhora que insistia que o empregado lhe tirasse um café «à francesa».
Por ter vivido muitos anos em Paris, a senhora sabia que o que a imigrante (ou turista?) queria era um café muito torrado. E aproveitou para lhe explicar que café bom, mesmo bom, era o verde (!), comprado numa loja da especialidade da Baixa. Prepara-se numa frigideira com um pouco de manteiga e de whiskey (bem, este é apenas o primeiro passo da confecção, não memorizei tudo).
«A senhora percebe mesmo de café!», terá a francesa exclamado, estupefacta. «Pois claro, os meus sogros são produtores de café», confidenciou-lhe a minha interlocutora. Penso que esta era a punch line da história, e foi por causa deste intercâmbio cultural que a senhora perdeu a camioneta directa para o trabalho.
Antes de sair do elevador, fiquei ainda a saber que, por ter viajado muito, a minha colega não é dada a esquisitices gastronómicas. Entre as iguarias que já provou constam macaco e cobra.
Antes da entrevista da Diana Krall, apanhei um taxista que, tendo-me ouvido a balbuciar duas ou três frases, de imediato berrou: «VOCÊ É DO PORTO?».
Depois contou-me tudo sobre os seus dois filhos - espertíssimos, embora um tire 18 e outro «apenas» 16, ambos no Técnico; sobre as pessoas da Microsoft que já transportou e lhe prometeram emprego para o mais velho, que em vez de trabalhar preferiu tirar um doutoramento; sobre os planos deste mesmo dotado mas acabrunhado filho «casar tarde» («diz que paga a casa e a alimentação mas que tão cedo não arranja namorada»), e sobre uma filha que não conhece o pai.
É «a cara chapada do irmão mais velho» e fruto de uma relação do senhor taxista - na altura em que era barman - com uma advogada da Madeira, casada. A filha tem menos dois anos que eu («você parece mái nova!») e tirou Medicina em Coimbra. Em homenagem ao pai incógnito, Carlos Alberto, chama-se Carla.
«Esta história que lhe estou a contar a si já a contei à Catarina Furtado!», exclama, excitado. «Ela quis logo anotar num bloco de notas mas eu não deixei».
Só por isso, já mereceria todo o meu respeito. E sempre ajuda a relativizar o facto de a mulher do Elvis Costello me ter dado toda uma nova confiança no meu calçado (onde, mal sabe ela, na véspera me tinha caído um pedaço de sopa).