Que a música nos acompanha e nos conforta, nos sossega e nos inquieta, é coisa que não serei a primeira a dizer-vos. De ano para ano, contudo, e à medida que se esboroam outras certezas e outros pilares, parece que a importância dos «nossos» discos - aqueles que ouvimos tantas vezes que somos capazes de reconhecer cada canção ao primeiro nano segundo - se agiganta. Parece até impossível que, numa altura em que tão pouca gente compra discos (e eu, que os recebo em bom número, aqui me penitencio também), todos estes alquimistas continuem a fazer magia dos nossos dias. Gostava de poder agradecer a toda a gente abaixo, e a mais alguns: em 2011, eles foram o espelho, e/ou o escape, da minha vida. E tanto a confrontação como a fuga me foram igualmente vitais.
Kurt Vile - Smoke Ring For My Halo
Na véspera de entrevistá-lo, em Paredes de Coura, perguntei a «pessoa amiga» se o conhecia bem. Disseram-me: «É um gajo com uma guitarra; vais gostar». Mal eu sabia como: nem o facto de o artista ter quase assassinado o meu gravador de trabalho com a sua cerveja Guiness me apaga o prazer que tenho tirado de ouvir este disco vezes sem conta desde então. Outro fã explicou, outro dia, que escutou tanto estas canções que já não as ouve, antes as respira. É por aí. (E esta música, em particular, dá a qualquer alma sensível vontade de aprender a tocar guitarra. Ou de viver dentro daquele riffzinho).
Jessica Lea Mayfield - Tell Me
Se o Kurt Vile é um tipo com um guitarra, a Jessica Lea Mayfield é a sua homóloga. Mas não é só isso, claro. Na sua trouxinha leva, também, a voz mais desdenhosa, desinteressada, venenosa que ouvi este ano (e oh se eu ouvi este disco centenas de vezes, sem nunca enjoar). Ouvi-la é imaginá-la num celeiro ou num qualquer cenário «white trash», toda desfrutável e enfadada, a debitar estas palavras medidas com régua e esquadro, fazendo tangentes àquilo que as outras não se atrevem a dizer. Adoro-a.
Fleet Foxes - Helplessness Blues
Eu cheia de medo que a música destes barbudinhos sucumbisse perante a hecatombe de ruído de um festival de verão, e as canções, sempre as canções, a erguerem-se com uma graciosidade ímpar, forte, feroz até, naquela tarde em que só faltou chover um bocadinho. Os Fleet Foxes fazem o mundo parecer um bocadinho mais bonito e quem os ouve sente-se um bocadinho melhor pessoa, também: aqui fica um beijinho para eles, que isto tudo junto, mais a música, não é coisa pouca.
Marcelo Camelo - Toque Dela
Diz ele que, enquanto o anterior Sou/Nós era um disco de água, este é «daquelas plantinhas que crescem nas fachadas dos prédios». Talvez seja: pela insistência, pelo inesperado de ver brotar nos cantos mais improváveis as melodias mais gostosas. Mas há tanto mar na música do Marcelo que todos os seus discos serão, sempre, de água. E isto percebi eu um bocadinho melhor este ano, nas poucas horas que passei no seu Rio de Janeiro, a poucos metros daquele oceano que é o nosso, também, mas que é outra coisa qualquer. Mais funda, com mais entrega, e com muito mais abandono.
Chico Buarque - Chico
Esta semana dei por mim a ouvir, pela enésima vez, o dueto «Se Eu Soubesse». Quando penso que conheço todos os cantos à casa, lá reparo num suspiro que não estava (não estaria?) lá, num trinadinho da guitarra, num lustro especial da melodia. É uma canção tão perfeita que custa a crer que pareça tão simples: ou vice-versa. Tudo no seu sítio, como diziam os Radiohead, mas com tanto coração que todos os lugares-comuns se apagam, dando antes lugar a uma leveza capaz de induzir a levitação. Viver ao mesmo tempo que o Chico Buarque é um grandessíssimo privilégio.
Jonathan Wilson - Gentle Spirit
De vez em quando lá aparece um cowboy a fazer, aparentemente, o mesmo que matilhas de coiotes fizeram antes dele - e a fazer-nos acreditar que é tudo novo, ou pelo menos digno de ser ouvido com tímpanos a estrear. As canções deste disco são quase todas compridas, e é sabido que eu não tenho grande paciência para longas divagações sem remate à vista. Mas é tão gostoso aninharmo-nos nos vales destas músicas que, muita vez, cheguei ao fim dos 70 e tal minutos do disco e voltei ao início.
Laura Marling - A Creature I Don't Know
Tal como a Jessica Lea, a Laura Marling tem pouco mais de 20 anos. O fogo deste disco - já o terceiro da piquena - é, porém, coisa sem idade. Fala do Bem e do Mal, diz a catraia, e gosta de Bob Dylan e de Joni Mitchell, confessa, como se fosse preciso. «The Beast», uma das canções deste álbum, é tão-só o mais impressionante tour de force que ouvi este ano: dir-se-ia que, quando acaba, não sobra pedra sobre pedra e que uma ou outra alma penada poderá queixar-se ao senhorio de falta de condições para continuar a sua assombração. Lamentavelmente, não há no YouTube a versão de estúdio da «The Beast»: aqui fica ela, gélida, mas ao vivo:
St Vincent - Strange Mercy
Nunca gostei da St Vincent tanto como devia, dada a família musical em que a moça se fez mulher. Sempre achei que sim, que havia ali talento; ora bem, eis uma rapariga lindíssima e carismática. Mas foi preciso chegar a 2011 para trazer as canções na cabeça, o que para esta básica que aqui vos escreve é o sinal mais evidente que a transfusão do disco para o meu ser se está a processar com sucesso. Diria que, por fim, a Annie Clark ligou os fios todos que andavam para aí aos caídos e, em vez de curto-circuito, fez fogo de artifício. Mas se calhar já tinha feito antes e eu é que não tinha percebido.
PJ Harvey - Let England
Meus amigos, quem chega a este ponto da carreira e faz um disco como este, prenho de sentido e conceito, sem se deixar consumir pela presunção e arrogância, e ainda oferecendo grandes canções de brinde, é uma grande artista. Não que dúvidas disso houvesse, mas ainda agora, passados bastantes meses, me arrepio a ouvir «The Words That Maketh Murder» ou «The Glorious Land». O que, para uma velha carcaça como eu, é bastante bom sinal.
The Dodos - No Color
Canções primaveris mas nervosentas, a fazer lembrar The Shins mas com carinha própria, e com a Neko Case nos coros. Era complicado eu não gostar deste disco dos Dodos, mas nunca julguei, quando pela primeira vez peguei no CD (arcaico, eu sei), que o fosse ouvir vezes sem conta, embalada pela corrente vagamente eléctrica da coisa e por esta bateria sem necessidade de pacemaker. Dos maiores vícios/vírus que apanhei este ano.
Márcia & JP Simões - A Pele que Há em Mim (Quando o Dia Entardeceu)
Não é um disco, «só» uma canção, mas não é delas que todos dependemos, a certa altura? Esta música já aparecia no primeiro EP da Márcia, de quem muito gosto, e no final deste ano conheceu uma nova vida, uma espécie de sequela com um convidado que também tenho na mais elevada estima: o JP Simões. Mas o que é mais bonito, aqui, e me leva a incluir uma canção no meio da lista dos álbuns, é a forma como este dueto é a perfeita antítese de tudo o que é mau nos duetos: os protagonismos, os egos em disputa, o exibicionismo. Aqui, não há nada a mais, e a menos só mesmo a duração da canção, que apetece ficar a ouvir para sempre. Mais uma vez, para isso existe o botão do repeat. E aquele minuto 2, segundo 5 é das coisas mais mágicas que ouvi este ano, e nos últimos também.
Outros discos e canções de que gostei muitíssimo este ano, independentemente de terem sido lançados, ou não, nos últimos 12 meses: Queen of Denmark, do John Grant; ainda o melhor disco de 2010, Admiral Fell Promises, do Mark Kozelek; Bon Iver, Bon Iver, do próprio; Fala Mansa, do belo Norberto Lobo; a valsa «tim burtoniana» «Em Dias Consecutivos», do Sérgio Godinho; o mais recente do Old Jerusalem; o dulcíssimo These New Countries, do(s) We Trust; aquele dueto «perdido» do Jeff Buckley com a Elizabeth Fraser, «All The Flowers In Time Bend Towards The Sun» (obrigada, Cibele); ainda os Firekites («qual o disco que não consegue apagar do seu leitor de MP3?»); muitas das canções do Algodão do ex-Pac; algumas da despedida dos R.E.M.; o Ryan Adams a fazer versões dos Vampire Weekend e dos Iron Maiden; o gótico sulista imperturbável e rendilhado da querida Emily Jane White. Os Ornatos, outra vez e de volta no ano que vem. Mas a sério, fui ouvir os discos outra vez, como se não os conhecesse de lado nenhum. Que bom perceber que eles falam bem, falam a minha língua, ainda e sempre, desconfio.